O primeiro versículo deste capítulo retoma
o assunto do capítulo 14:65. Os romanos haviam tirado dos judeus o poder de
decidir sobre a pena de morte e ela foi investida inteiramente no representante
de César, por isso os líderes religiosos sabiam que deveriam apresentá-Lo diante
de Pilatos e exigir dele a sentença de morte baseada em algo que lhe parecesse adequado.
O versículo 3 nos diz que eles “O acusavam
de muitas coisas”, mas não nos é dito por Marcos que coisas eram essas. Ficamos
impressionados, no entanto, pela forma como uma frase ocorre repetidas vezes na
primeira parte do capítulo – “O Rei dos Judeus”
(vs. 2, 9, 12, 18, 26). Lucas nos diz definitivamente que eles disseram que Ele
estava “proibindo dar o tributo a César,
e dizendo que Ele mesmo é Cristo, o Rei” (Lc 23:2). Deduzimos isso do breve
relato de Marcos, embora ele não o afirme.
Mais uma vez, diante de Pilatos, o Senhor
confessou Quem Ele era. Desafiado ser o rei dos judeus, ele simplesmente respondeu:
“Tu o dizes”, o equivalente a “sim”.
Quanto ao resto, Ele novamente não respondeu nada, porque em todas as ferozes acusações
dos principais sacerdotes não havia nada a se responder. É digno de nota que Marcos
registra apenas duas declarações de nosso Senhor perante Seus juízes. Diante da
hierarquia judaica, Ele confessou ser o Cristo, o Filho de Deus e o Filho do Homem:
perante o governador romano, Ele confessou ser o Rei dos judeus. Nenhuma testemunha
prevaleceu contra Ele; Ele foi condenado por causa de Quem Ele era e não podia negar
a Si mesmo.
Além disso, Pilatos tinha conhecimento suficiente
para discernir o que era a raiz de todas as acusações, “ele bem sabia que por inveja os principais dos sacerdotes O tinham
entregado”. Isto levou à sua tentativa ineficaz de desviar para Jesus os pensamentos
da multidão, quando se tratava da questão do prisioneiro a ser libertado. A influência
dos sacerdotes com o povo era demais para ele e, portanto, desejoso de agradar a
multidão, Pilatos violou o senso de justiça que tinha. Ele libertou o rebelde e
homicida Barrabás, e açoitando Jesus, entregou-O para ser crucificado.
A voz do povo prevaleceu sobre o melhor
julgamento do representante de César: em outras palavras, a autocracia abdicou em
favor da democracia e o voto popular a determinou. Um antigo provérbio latino afirma
que a voz do povo é a voz de Deus. Os fatos da crucificação negam categoricamente
esse provérbio. Aqui a voz do povo era a voz do diabo.
Os versículos 16-32 nos dão, de maneira
muito detalhada, as terríveis circunstâncias que cercam a crucificação. Todas as
classes combinadas contra o Senhor. Pilatos já O havia açoitado. Os soldados romanos
escarneciam d’Ele de formas cruéis e desdenhosas. As pessoas comuns – os que
passavam – protestavam contra Ele. Os sacerdotes zombavam d’Ele com sarcasmo. Os
dois ladrões crucificados – representantes das classes criminosas, a própria escória
da humanidade – insultaram-No. Nobres e símplices, judeus e gentios, estavam todos
envolvidos. No entanto, em consequência, todos estavam ajudando a cumprir as Escrituras,
embora, sem dúvida, inconscientemente em si mesmos.
Isto é particularmente notável se tomarmos
o caso dos soldados romanos – homens que desconheciam a existência das Escrituras.
O versículo 28 toma nota de que a crucificação dos ladrões de ambos os lados era
um cumprimento de Isaías 53:12, mas muitas outras coisas que eles fizeram também
cumpriram a Palavra. Por exemplo, Seu semblante deveria estar “tão desfigurado, mais do que o de outro
qualquer” conforme Isaías 52:14, e havia um cumprimento disso na coroa de espinhos
e nos ferimentos. O Juiz de Israel deveria ser ferido “com a vara na face”, de acordo com Miquéias 5:1 – ACR; isso os soldados
fizeram, como mostra o versículo 19 de nosso capítulo. O versículo 24 registra o
cumprimento por eles do Salmo 22:18. “deram-Me
fel ... e ... vinagre” diz o Salmo 69:21, e isto também os soldados fizeram,
embora o cumprimento não esteja registrado aqui, mas em Mateus. Achamos que estamos
corretos em dizer que pelo menos 24 profecias foram cumpridas no dia de 24 horas
em que Jesus morreu.
Todos os homens nessa hora estavam se exibindo
em sua tonalidade mais tenebrosa, e nestes versículos não lemos de nada que Ele
tenha dito. Foi exatamente como o profeta disse: “como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, Ele não abriu a Sua
boca”. Era a hora do homem e o poder das trevas estava no auge. A perfeição
do santo Servo do Senhor é vista em Seu sofrimento em silêncio em tudo aquilo que
Ele suportou das mãos dos homens.
Aquilo que o Senhor Jesus sofreu nas mãos
dos homens foi muito grande, mas cai em comparativa insignificância quando nos voltamos
para considerar o que Ele suportou nas mãos de Deus como a Vítima, quando foi
feito pecado por nós. No entanto, todo esse assunto muito maior é comprimido por
Marcos em dois versículos – 33 e 34; enquanto seu relato do assunto menor abrange
52 versículos (Mc 14:53-15:32). Evidentemente o fato é que o assunto menor poderia
ser descrito, enquanto que o maior não poderia ser. As trevas que desceram ao meio-dia
esconderam dos olhos dos homens até aquilo que era externo àquela cena.
Tudo o que pode ser relacionado historicamente
é que por três horas Deus colocou o silêncio da noite sobre a Terra e assim cegou
os olhos dos homens, e que no final das horas Jesus proferiu o brado de angústia,
que havia sido escrito como profecia mil anos antes, no Salmo 22:1. O santo Emissário
do pecado foi abandonado, pois Deus deve julgar o pecado e bani-lo irrevogavelmente
da Sua presença. Esse banimento total e eterno nós merecíamos, e que vai
cair sobre todos os que morrem em seus pecados. Ele suportou isso por completo,
mas como Ele possuía a santidade, a eternidade, a infinidade da Deidade plena,
Ele poderia emergir dela no final das três horas. No entanto, o brado que veio de
Seus lábios como Ele o fez, mostrou que Ele sentiu o total horror disso. E Ele tinha
a capacidade de sentir que isso era infinito.
Aquilo que Ele sofreu nas mãos dos homens
não deve ser considerado levianamente. Hebreus 12:2 diz: “O Qual ... suportou a cruz,
desprezando a afronta [vergonha
– JND]”, mas devemos notar a diferença
entre a vergonha e o sofrimento. Muitos homens de grande coragem física
sentiriam mais vergonha do que sofrimento. Ele sentiu o sofrimento, mas desprezou
a vergonha, na medida em que estava infinitamente acima dela, e sabia que Ele era
“glorificado perante o Senhor” (Isaías
49:5 – ARA). Cremos que podemos dizer que Ele nunca foi mais glorioso aos olhos
do Senhor do que quando estava sofrendo sob o julgamento de Deus como o
Emissário do pecado. Tal era o paradoxo[1] da santidade e amor divinos!
O efeito desse clamor sobre os espectadores
nos é dado nos versículos 35 e 36. Eles dificilmente teriam visto uma referência
a Elias em Suas palavras se não fossem judeus: mas, então, quão absurdo e ignorante
não ter reconhecido o clamor a Deus que estava entesourado em suas próprias Escrituras.
A realidade do fato de Sua morte é dada
por Marcos da maneira mais breve possível. Ele expirou Seu espírito nas mãos de
Deus, logo após ter clamado em alta voz. O que Ele disse está registrado em Lucas
e João. Aqui nos é dito simplesmente o modo como Ele disse isto. Não houve gradual
diminuição de força, de modo que Suas últimas palavras fossem um débil sussurro.
Em um momento uma grande voz e no momento seguinte Ele estava morto! Sua morte foi
tão manifestamente sobrenatural que impressionou grandemente o centurião que estava
de plantão e vigiando. O que quer que tenha sido o significado exato de Suas palavras
na mente do centurião, ele deve ter pelo menos sentido que era uma testemunha de
algo sobrenatural. Endossamos suas palavras e dizemos: “Verdadeiramente este Homem era o Filho de Deus”, no mais pleno sentido.
A verdade dessas palavras também foi testemunhada
pelo véu do templo sendo rasgado. Este grande acontecimento parece ter ocorrido
sincronizado com a Sua morte. Foi a mão divina que o rasgou, pois qualquer mão humana
teria que rasgá-lo de baixo para cima. O elaborado sistema típico instituído em
Israel, em conexão com os sacrifícios e o templo, todos aguardavam a morte de Cristo;
e, sendo a morte consumada, a mão divina rasgou o véu como um sinal de que o dia
da figura havia terminado, e o caminho para o Santo dos santos tornou-se manifesto.
Em todas as emergências, Deus tem em reserva
algum servo que se manifestará e cumprirá Sua vontade. Pedras iriam clamar, ou seriam levantadas para
se tornar homens se Deus precisasse deles em caso de emergência; mas isso nunca
acontece pois Deus nunca está em emergência como essa. Ele sempre tem um homem na
reserva e José era o homem nessa ocasião. Este tímido e secreto discípulo foi subitamente
cheio de coragem e enfrentou Pilatos com ousadia. Ele era o homem nascido no mundo
para cumprir, no momento oportuno, a palavra profética de Isaías 53:9 – “com o rico na Sua morte”. Tendo cumprido
isso, ele sai completamente do relato.
Ele perdeu a oportunidade de ser identificado
com Cristo em Sua vida, mas se identificou com Ele quando estava morto. Isso é notável,
pois exatamente inverteu o procedimento dos discípulos. Eles se identificaram com
Ele durante Sua vida e falharam miseravelmente quando Ele morreu. A aparente derrota
de Jesus teve o efeito de encorajar José. Agitou as brasas fumegantes de sua fé
em um repentino incêndio. Ele “esperava o
reino de Deus”, e podemos ter certeza de que no dia do reino a fé e as obras
de José não serão esquecidas por Deus. O tipo de sua fé é exatamente o que precisamos
hoje – o tipo que desperta quando a derrota parece certa.
Consequentemente a ação de José teve o efeito
de trazer diante de Pilatos o caráter sobrenatural da morte de Cristo. Nenhum homem
poderia tirar Sua vida; Ele a entregou por Si mesmo, e no momento adequado, quando
tudo foi cumprido. Os dois ladrões, como sabemos, permaneceram por horas após, e
a morte deles teve que ser acelerada por meios cruéis. Pilatos ficou maravilhado,
mas sendo o fato confirmado, ele concedeu o pedido. Assim, a vontade de Deus foi
feita, e a partir daquele momento o corpo santo estava fora das mãos dos incrédulos.
Mãos de amor e fé realizaram os serviços e O colocaram no sepulcro. As mulheres
devotadas também foram testemunhas quando até mesmo os discípulos desapareceram
e viram onde Ele havia sido colocado.
[1] N. do T.: Pensamento ou
argumento que contraria os princípios do pensamento humano. É o oposto do que alguém pensa ser a verdade.