A abertura deste capítulo nos aproxima das
cenas finais da vida do Senhor. Ele estava do outro lado do Jordão, mas perto das
fronteiras da Judéia, e os fariseus apareceram, opondo-se a Ele, tentando-O. Ao
levantar questões quanto ao casamento e ao divórcio, esperavam envolvê-Lo em alguma
contradição das coisas que Moisés havia ordenado, e assim encontrar um ponto de
ataque. O Senhor não contradisse Moisés, mas retornou para além dele, ao pensamento
original de Deus na criação do homem e da mulher. Os fariseus eram grandes defensores
da lei de Moisés, mas Ele lhes mostrou que, neste caso, a lei não expressava o pensamento
original de Deus. É importante perceber isso, pois nos fornece uma razão pela qual
a lei não se torna a regra de vida para o Cristão.
A lei caiu abaixo da altura do pensamento
de Deus, mas Cristo não: Ele o manteve totalmente. O versículo 9 eleva toda a questão
do casamento desde o nível do homem e da conveniência humana até o nível de Deus
e Sua ação. É uma instituição divina e não um arranjo humano e, portanto, não deve
ser adulterado pelos homens. Se Deus une, não o separe o homem.
Este versículo afirma um grande princípio
que é universalmente verdadeiro. O inverso também é verdadeiro – o homem não deve
unir o que Deus separou. É um fato triste que desde que o pecado entrou, o homem
tem sido consumido com o desejo de desfazer o que Deus fez. É assim nas coisas naturais,
e muitos dos males que sofremos vêm da nossa adulteração das coisas dadas por Deus,
mesmo em questões de comida, etc., e geralmente perturbando o equilíbrio das coisas
que Ele estabeleceu. Certamente é assim nas coisas espirituais. Muitas dificuldades
e muitos problemas desnecessários da alma nascem do mau entendimento quanto às coisas
que Deus juntou em Sua Palavra, ou coisas que Ele separou.
Tendo estabelecido o casamento diante deles
na luz correta, o Senhor trata, nos versículos 13 a 16, com as crianças. Quanto
a estas, os discípulos compartilham os pensamentos comuns do mundo, que estão muito
abaixo dos pensamentos de Deus. Os discípulos julgaram que elas eram demasiado insignificantes
para a atenção do Mestre, mas Ele pensava de outra forma. Ele as recebeu com alegria,
tomou-as em Seus braços, colocou as mãos sobre elas e as abençoou. Ele também mostrou
que a única maneira de entrar no reino de Deus é ter o espírito e a mente de
uma pequena criança. Se alguém se aproxima desse reino como alguém significante,
ele encontra a entrada trancada. Se ele vier como um insignificante ninguém,
ele poderá entrar.
Então, nos versículos 17-27, recebemos o
ensinamento do Senhor em relação às possessões. É impressionante como casamento,
filhos e posses se sucedem neste capítulo, pois muito de nossas vidas neste mundo
está ocupado com essas três coisas. Todas as três estão pervertidas e são
mal-usadas nas mãos de homens pecadores; e todas as três são colocadas na posição
correta nos ensinamentos de nosso Senhor.
Aquele que veio correndo para Jesus exibiu
muitos aspectos louváveis. Mateus nos diz que ele era jovem e Lucas que ele era
um príncipe. Ele era sincero e reverente e reconhecia n’Ele um grande Rabi[1], que podia dirigir os homens
para a vida eterna. Ele tomou como certo que a vida deveria ser obtida por ações
humanas, de acordo com a lei. Evidentemente ele não tinha ideia da Divindade de
Jesus e, portanto, temos as palavras do Senhor no versículo 18. Ele repudiou a bondade
à parte de ser Ele Deus, ao dizer, de fato: “Se Eu não Sou Deus, não Sou bom”.
Quando o jovem fez sua pergunta com a lei
em mente, o Senhor o remeteu à lei, particularmente aos mandamentos relacionados
ao dever do homem para com o próximo. Ele poderia alegar ter observado esses
mandamentos, pelo menos no que diz respeito a seus atos, e Jesus, olhando para
ele, o amou. Isso mostra que sua alegação, de corretamente observar dessas coisas
que a lei impunha, era verdadeira. Ele tinha um caráter excepcionalmente bom, com
características que em si eram prazerosas a Deus. O Senhor não menosprezou essas
amáveis características. Ele as admitiu e olhou para ele com um olhar amoroso.
Ainda assim, Ele o provou. Uma coisa ele
não tinha, e isso era a fé dada por Deus, que teria apreendido Quem era Jesus, e
o levaria a tomar a cruz e segui-Lo; a fé que teria preferido o tesouro no céu ao
tesouro na Terra. Ele esperava que o Senhor o direcionasse àlguma obra da lei
pela qual a vida deveria ser alcançada; em vez disso, ele foi direcionado a
uma obra de fé. Entristecido em
seu coração, ele foi embora. Ele não possuía fé; então era impossível para
ele mostrar sua fé por suas obras. A mesma prova nos vem. Como respondemos a isso?
Esta é uma questão tremenda. Quão lentos
todos nós somos para desistir da lei em favor de Cristo e da Terra em favor do o
céu! Não é de se admirar que o Senhor fale da dificuldade com que os ricos entram
no reino. O versículo 23 fala daqueles “que
têm riquezas”, e versículo 24 daqueles “que
confiam nas riquezas”. O fato é que, é claro, é muito difícil ter riquezas sem
confiar nelas. Naturalmente nos apegamos às riquezas e à Terra. Cristo oferece a
cruz e o céu.
Os discípulos, acostumados a considerar
as riquezas como um sinal do favor de Deus, ficaram muito surpresos com essas palavras;
eles sentiram que elas completamente lhes tiraram o chão debaixo de seus pés. De
fato, elas fazem isso. “Quem poderá,
pois, salvar-se?” é uma significativa questão. O versículo 27 dá a resposta
definitiva. A salvação é impossível por meio dos homens, embora seja possível por
meio de Deus. Em outras palavras, era como se o Senhor dissesse: “Se for uma questão
do que o homem pode fazer, ninguém pode ser salvo; mas se for uma questão
sobre o que Deus pode fazer, qualquer um pode ser salvo”.
Enfatizamos essa palavra. Salvação conseguida
pelo homens não é improvável, mas IMPOSSÍVEL. A porta, no que diz respeito aos nossos
próprios esforços, está trancada para nós. Deus abriu outra porta, porém, é pela
morte e ressurreição, para a qual o Senhor agora estava dirigindo os pensamentos
de Seus discípulos.
Embora a morte e ressurreição estivesse
diante da mente do Senhor, glória terrena ainda estava diante da mente de Pedro,
e ele demonstrou isso por sua observação registrada no versículo 28. Ele se referia,
certamente, para a prova que o Senhor tinha acabado de apresentar ao príncipe jovem
e rico. Pedro achava que, embora o príncipe tivesse falhado diante da prova, ele
e seus companheiros discípulos não falhariam; na verdade, ele realmente acrescenta,
como Mateus registra: “que recompensa,
pois, teremos nós?” (Mt 29:27 – AIBB). Sua mente, investigativa e impetuosa,
desejava antecipar as boas coisas que viriam. A resposta do Senhor indicava que
na época atual deveria haver um grande ganho, embora com perseguições e, na era
vindoura, a vida eterna.
Esta declaração de nosso Senhor é ilustrada
pela vida de serviço de Paulo, como visto em escrituras como, Atos 16:15, 18:3,
21:8; Romanos 16:3-4, 23; 1 Coríntios 16:17; Filipenses 4:18; Filemon 22. Casas
estavam à sua disposição em muitas cidades, e muitos consideravam uma honra cumprir
a parte de irmão, irmã, mãe ou filho em relação a ele. As perseguições certamente
pertenciam a ele. A vida eterna no mundo por vir estavam diante dele. Tal é a
porção daqueles que seguem e servem este perfeito Servo de Deus.
O versículo 31 foi evidentemente proclamado
como um aviso e uma correção para Pedro. O ímpeto aqui pode não significar o primeiro
lugar lá. Tudo depende do motivo por trás do serviço. Se Pedro quisesse fazer uma
barganha – seguir tanto para receber tanto – isso por si só se mostraria um motivo
incorreto. Ainda assim, não diz que todos os que são os primeiros, serão os últimos e que todos os
últimos serão os primeiros. Paulo
foi à frente de todos em seu dia, e quem pode desafiar a pureza de seu motivo, ou
a realidade de sua devoção ao seu Senhor?
A coisa que Pedro e o resto mais precisavam
era perceber e entender a morte e ressurreição do seu Mestre que se aproximava rapidamente.
Não há nada que nós, hoje, dezenove séculos após o evento, mais profundamente precisamos
perceber e entender. Não é apenas a base de toda a nossa bênção, mas transmite o
seu próprio caráter para toda a vida e serviço Cristãos. Nenhum serviço inteligente
pode ser prestado, exceto à luz disso.
Os versículos 32 a 34 nos dão a quarta ocasião
em que o Senhor instruiu Seus discípulos a esse respeito; e o pedido de Tiago e
João, registrado no versículo 37, forneceu ao Senhor uma quinta ocasião. Suas mentes
ainda estavam cheias de expectativas relativas a um reino glorioso na Terra, e eles
desejavam promover seus próprios interesses naquele reino. Agora o Senhor Jesus
estava aqui como o perfeito Servo da vontade de Deus, e isto significava para Ele
o cálice do sofrimento e o batismo da morte. Posições de honra no reino vindouro
serão concedidas para aqueles que serviram este maravilhoso Servo, de acordo com
a medida que aceitaram o sofrimento e a morte em Sua causa. Ainda assim, Ele não
designa essas posições de distinção. Tudo isso fica a critério do Pai, pois Ele
permanece fiel ao lugar de Servo que Ele tomou. A não ser que permaneçamos fiéis
à posição em que fomos colocados – o lugar de identificação com nosso Senhor rejeitado
– não podemos esperar nenhum lugar de reconhecimento especial na glória do reino.
Essa descarada caça por posição por parte
de Tiago e João pode nos inclinar a culpá-los acima de todos os outros, se não fosse
pelo versículo 41, que mostra que os mesmos desejos egoístas eram cogitados por
todos, e que se opuseram, não por causa do pedido que os dois haviam feito, mas
porque haviam sido postos para trás pela maneira como os dois agiram. Seu aborrecimento,
porém, só deu mais ocasião para a manifestação da graça perfeita de seu Senhor.
Quão fácil era, e é, que os discípulos de
Jesus aceitem e adotem os padrões e costumes do mundo em sua volta, para supor que,
porque todos parecem estar fazendo algo, então essa é a coisa certa a se fazer.
Mais e mais o Senhor nos diria: “Mas entre
vós não será assim”. As nações têm seus grandes homens, que exercem sua autoridade
de um modo arrogante. Entre os discípulos do Senhor, a grandeza se manifesta de
uma maneira completamente diferente. Entre eles a verdadeira grandeza é manifestada
ao se tomar a humilde posição de servir aos outros – servindo ao Senhor ao servir
a outros.
O Filho do Homem é o brilhante exemplo de
serviço deste tipo. Quem era tão grande como Ele em Seu estado original? Então “milhares de milhares O serviam” (Dn 7:10).
Quem tomou um lugar tão humilde, ministrando aos outros? Quem prestou serviço a
tal ponto de “dar a Sua vida em resgate de
muitos”? Somente por essa razão, além de outras considerações, o lugar de preeminência
deve ser d’Ele. Aqueles que O seguem mais de perto no serviço humilde neste dia,
serão os mais importantes naquele dia.
No versículo 45, o Senhor não apenas traz
a morte diante de Seus discípulos pela quinta vez, mas explica seu significado.
Anteriormente, Ele havia evidenciado o fato de Sua morte, para que as mentes dos
discípulos não mais estivessem obcecadas pelas expectativas de um reino visível
chegando. Agora o significado do fato
aparece. Ele iria morrer para pagar o preço do resgate de muitos. Aqui, então, vinda de Seus
próprios lábios, temos uma afirmação clara quanto ao caráter substitutivo e expiatório
de Sua morte. É por “muitos”, pois o
ponto aqui é o efeito verdadeiro e percebido
de Sua morte redentora. Em 1 Timóteo 2:6, onde a abrangência e o alcance dela estão em questão, a palavra é “todos”.
Esses tratamentos com os Seus discípulos
aconteceram “no caminho subindo para Jerusalém”
(v. 32). No versículo 46 eles chegam a Jericó, e as cenas finais de Sua vida começam.
Bartimeu, o mendigo cego, forneceu-lhe uma oportunidade impressionante de manifestar
a misericórdia de Deus. Misericórdia era o que o cego ansiava, embora o povo, que
não entendia a misericórdia divina, o tivesse silenciado. No entanto, ele conseguiu
misericórdia, e foi além de seus pensamentos, pois não só lhe deu a visão, mas
o alistou como um seguidor daqu’Ele que estendeu-lhe a misericórdia. A fé
de Bartimeu foi mostrada ao se dirigir a Jesus como o Filho de Davi, embora outros
falassem d’Ele apenas como Jesus, o Nazareno. Sua fé pode ter sido apenas uma
pequena fé, pois não chegou ao apogeu de chamá-Lo de Filho de Deus; mas pouca fé
recebe uma resposta abundante, tanto quanto, certamente, recebe a grande fé. Sejamos
gratos por isso.
[1] N. do T.: Rabi é um título de
respeito entre os judeus, significando “mestre”, “instrutor”, mas não se sabe
que tenha sido usado até a época de Herodes, o Grande. Foi aplicado ao Senhor,
embora muitas vezes traduzido como “mestre”
(Mc 9:5, 11:21, 14:45; Jo 1:38, 49, 3:2, 26, 4:31, 6:25, 9:2, 11:8. Jesus
proibiu os discípulos de serem chamados de Rabi, pois um era seu Mestre
(καθηγητής – instrutor), a saber, Cristo (Mt 23:8). De acordo com os judeus, as
graduações de honra subiam de rabi a rabino, e daí para raban ou raboni (Jo
20:16) “Concise Bible Dictionary”,
pág. 647.